Estava ouvindo umas músicas antigas e lembrei-me de um episódio que vivi há vários anos. Eu tinha entre 13 e 14 anos, acredito, e fui convidado por um amigo para ir até a sua escola, onde haveria um show de bandas estudantis. Raríssimas vezes eu havia saído de ônibus, acho que não mais do que uma ou duas efetivamente sozinho (descontados os trechos casa-escola, que ainda assim eram raros). Ou seja: para mim, era incrivelmente assustador enfrentar o mundo desta forma e desbravar uma parte desconhecida da vida.
Cheguei na hora em que a banda do meu amigo estava tocando. Lembro de ir caminhando pela rua que levava ao colégio e estar ouvindo a música a distância. Quando me aproximei, confirmei que era a sua banda e aquele momento ganhou um tom especial. No fim das contas, passamos mais algumas horas lá, entre salas de aula, shows de outras bandas e comidinhas. Até uma roda punk rolou, estava na moda. Em alguns momentos, eu conversei com pessoas. Se hoje isso ainda é difícil para mim, que dirá naquela época, em que eu estava ainda mais enclausurado em meu próprio mundinho?
Aí estávamos indo embora, meu amigo e eu. Quando o ônibus se aproximou, um bando de guris veio se despedir de nós. Normal, estávamos todos juntos curtindo a tarde. Um deles, me deu um abraço e um beijo no rosto. Ele era baixinho, cabelo preto comprido, estilo roqueirinho, all star, roupa preta. Aquele movimento singelo - que pode até hoje significar absolutamente nada e ter ficado cristalizado apenas na minha memória - criou em mim uma marca profunda. Até aquele momento, e por muitos anos depois dele, a possibilidade de ser beijado por um menino não fazia parte da minha imaginação.
Como é triste não ser capaz de imaginar que algo seja possível, que possa fazer parte da nossa vida. Até pelo menos meus 19 anos, eu realmente não vislumbrava a possibilidade de amar outros rapazes e de existir sexualmente. Por muito tempo, tive dificuldade de acreditar sequer que eu pudesse ter bons amigos. Trabalhar. Ir a festas.
A vida era algo que não fazia sentido para mim, que eu era incapaz de dar sentido.
O menino roqueirinho plantou uma sementinha. Tivéssemos convivido por mais tempo, talvez o impacto de sua existência houvesse me libertado das amarras da inexistência mais cedo. Eu poderia ter raiva dele, do mundo, de todos que não me deram a mão. Poderia odiar. Já odiei, aliás. Planejei vinganças intermináveis, reviravoltas, momentos em que eu riria da desgraça alheia, que gargalharia frente àqueles que um dia já olharam feio para mim, que já riram de mim.
Aí um dia tudo fez sentido: por que eu queria isso tudo? Que diferença faria? Meus anos de inexistência voltariam? Ganhariam sentido? Não. Talvez tudo o que eu conseguisse seria tirar o sentido da existência de outras pessoas, algo que certamente eu não desejo para ninguém.
Uma vez eu estava reclamando da vida com um amigo. Um dos poucos com os quais eu conseguia conversar, a primeira pessoa que realmente me escutou e ajudou a lidar com o momento em que finalmente entendi que gostava de guris. Ele me disse algo que até hoje faz muito sentido: foi ter deixado de viver tudo isso que me tornou quem eu sou hoje, seja isso bom ou ruim. Eu seria outra pessoa se tivesse vivido outras coisas. Uma obviedade, é claro, mas uma obviedade que a gente frequentemente esquece e deixa passar ou nos afogar em agonia.
Hoje em dia não sinto mais vontade de voltar ao passado e corrigir tudo, ou de encontrar aqueles que me machucaram - não foram poucos - e tecer vinganças. O que sinto é medo de voltar a ser quem eu era, uma pessoa que não vai atrás de seus sonhos, uma pessoa que sequer vislumbra que pode sim ter sonhos. Uma pessoa cuja existência não tem sentido nem para si mesmo.
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