Parece filme na sessão da tarde: carinha conhece alguém, apaixona-se, sofre, conquista e vive feliz pra sempre. Essa fórmula, repetida à exaustão, pode ter nos levado a acreditar que ela funcionará assim na vida real. Desculpem-me quebrar essa expectativa, mas isso não é verdade. A gente cresce acreditando no amor romântico e em suas promessas reforçadas pelos filmes de amor docinho, mas a realidade tem a mania de nos passar a perna.
Um dia, meu amigo acordou e tinha ao seu lado alguém diferente daquela pessoa pela qual se apaixonara. Na verdade, era a mesma pessoa, mas não era a mesma pessoa. Algo ali havia mudado. Meu amigo foi rápido em detectar o problema: seu namorado não o procurava mais para o sexo, andava cansado, reclamava disso e daquilo etc. O problema obviamente é o tal namorado que mudou, não é mesmo? Não, não é.
O que significa apaixonar-se?
Quando nos apaixonamos por alguém ou alguma coisa, é como se todo o resto perdesse a importância. A mera presença do alvo de nossa paixão já nos completa. Apaixonar-se é encantar-se, é estar sob efeito de um feitiço que nos faz querer estar perto, conviver e compartilhar. Estar apaixonado não é amar, querer bem, ter vontade de cuidar. Estar apaixonado é um sentimento egoísta de querer para si, de ser atraído independentemente do bom senso.A paixão é viciante: quanto mais do que nos enfeitiça nós ganhamos, mais nós queremos. Se não recebemos, corremos atrás. Por outro lado, quanto mais temos, mais precisamos, ao ponto que um dia o efeito perde-se de nós. Um dia acordamos para descobrir que aquela mágica que nos prendia a outra pessoa deixou de estar ali.
O que acontece quando a paixão acaba?
A resposta a essa pergunta depende do que foi construído enquanto ela existia. Isso varia de pessoa para pessoa, relação para relação. Alguns se jogam no encanto e largam suas vidas para se alimentar ao máximo e exclusivamente da paixão. Outros são cautelosos, até mesmo resistentes. Há um jeito certo de lidar com essa magia de apaixonar-se? Não. Algumas vezes descobrimos, depois que o feitiço passou, que realmente gostamos daquela pessoa. Algumas vezes nós a amamos. Outras vezes, porém, descobrimos que sem o efeito mágico aquela pessoa não se encaixa em nossas vidas.A paixão é, como todas as coisas, passageira. O que fica após o seu término é mais ou menos a mesma coisa que havia antes dela surgir, somada e subtraída pelas mudanças vividas no processo. Nenhum relacionamento, seja ele com uma pessoa ou uma ideia, passa por nós sem deixar marcas, sem alterar o nosso caminho mesmo na mais ínfima proporção. Em meio a esse turbilhão confuso que envolve ser alguém e viver, cabe a nós conhecermos quem somos e o que queremos para as nossas vidas.
A felicidade depende do quê, então?
De nós mesmos, única e exclusivamente. Sei que é difícil acreditar, afinal, foi outra pessoa que lançou um feitiço sobre nós! Contudo, a verdade é que nossos amores começam e terminam dentro daquilo que nós somos. O contato com o outro pode aumentar, diminuir ou modificar o que sentimos, mas apenas em função de nossa percepção sobre este contato. O que sentimos e desejamos conversa com o mundo, não depende dele.O budismo apresenta quatro nobre verdades: (1) o sofrimento é parte da vida, da doença e da velhice; (2) a origem do sofrimento é o nosso desejo e anseio pelas coisas; (3) para livrarmos do sofrimento, devemos nos desapegar destes desejos e anseios; (4) o caminho para esse desapego passa por comportamentos 'corretos', ou seja, justos, cheios de compaixão etc. Meu interesse está na segunda e terceira verdades: o nosso apego ao desejo de que as coisas sejam diferentes do que são. No caso do fim da paixão, desejamos que as coisas continuem do jeito que eram antes, que nossos sentimentos voltem a ser o que eram. Com muita frequência, nós culpamos a outra pessoa pelo esvaziamento das nossas sensações.
De quem é a culpa, afinal?
Penso que encontrar culpados não seja a resposta. O que precisamos entender é que apaixonar-se não é garantia de felicidade, mas também não é algo a ser evitado. A paixão é como uma chama atraindo a nossa atenção: sua luz nos mostrará coisas que não veríamos sem ela. Cabe-nos continuar nossas vidas sem nos jogarmos ao fogo, aproveitando a sua luz e o seu calor. Se o fogo se apagar, talvez seja o momento de acender outras chamas ou de procurar outras luzes para nos atrair. Ou, quem sabe ainda, o verdadeiro trabalho envolva não deixar o fogo se extinguir.A paixão – e o fogo – não são garantias de nada. Eles são parte da vida, meramente. O que faremos com eles depende do que queremos fazer com as nossas vidas. Para alguns, a resposta é alimentar o fogo e a paixão com tudo o que estiver ao alcance, inclusive com o próprio corpo e a própria vida. Para outros, um fogo, uma luz e um calor não são suficientes. Para outros ainda, o fogo é algo cujo calor deve-se aproveitar enquanto queima, não mais, não menos.
Para a vida – e para as paixões – não há respostas. Elas dependem de quem nós somos naquele preciso instante em que os eventos da vida acontecem. Só há uma constante para a vida: a mudança é a regra. Se não aceitarmos isso, estaremos condenados a viver de passados e chamas apagadas, o que é garantia de infelicidade.
2 comentários:
"Para alguns, a resposta é alimentar o fogo e a paixão com tudo o que estiver ao alcance, inclusive com o próprio corpo e a própria vida." E pra quê, por que fazemos isso? Porque a paixão, como você escreveu, é viciante ou porque nossa sede de contato é tanta que insistimos em nos apegar àqueles que nos ferem? Estava precisando ler um texto como este, obrigado por tê-lo escrito.
Acho que sentimos falta de nós mesmos e procuramos em outras pessoas o que acreditamos que falta em nós.
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