Esta é a terceira e última parte da série sobre a teoria queer. Isso não quer dizer que não escreverei nunca mais sobre ela, apenas que estou concluindo aqui esse projeto de introdução às ideias estranhas que ela propõe.
Deborah Britzman (1995) sugere, para uma pedagogia que se possa dizer queer, o que chama de três técnicas: o estudo dos limites, da ignorância e das práticas de leitura. Para a autora, é muito importante considerar o que temos permissão para pensar e que perguntas não deveríamos fazer dentro da sociedade com a qual negociamos. Desse ponto de vista, é necessário questionar os limites impostos ao saber e duvidar dos conhecimentos já estabelecidos, em particular os que se sustentam em oposições binárias. O que define, e a partir de quais critérios, que tópicos são relevantes de serem pensados em determinados contextos? Pensar os limites significa também levar em consideração de que forma a normalidade é produzida e que efeitos ela tem, principalmente (mas não apenas) nos sujeitos que se situam fora dela. A teoria queer “constitui normalidade como uma ordem conceitual que se recusa a imaginar a própria possibilidade do Outro precisamente porque a produção da alteridade como externa é central para seu próprio autorreconhecimento” (BRITZMAN, 1998, p. 82). Aos nos preocuparmos com os limites, também surge o questionamento sobre quando acreditamos que sabemos o suficiente sobre uma outra pessoa a ponto de nos crermos capazes de falar sobre (por) elas ou de determinar o que devem saber ou não.
A ignorância, num entendimento queer, não se trata do oposto ao conhecimento ou da falta deste. Ela é, na verdade, um efeito do modo como se conhece, uma relação com as informações que opera de tal maneira a colocar o sujeito em posição de não interagir com determinados conhecimentos. Portanto, antes de se perguntar por que um indivíduo não compreende algo que cremos que ele deva aprender, é essencial buscar de que saberes ele dispõe e quais considera pertinentes para a sua vivência.
O modo como o sujeito interage com o mundo, os textos que lê, as imagens de que se apropria: sem a compreensão dessas questões o ensino fica comprometido. É necessário entender qual a posição desse sujeito estudante, de que forma ele entra em contato com um conhecimento diferente daquele que já carrega como parte de si e como se dá a sua relação com o desconhecido. De que maneiras o que ele não conhece reorganiza, desmonta ou bloqueia seus pensamentos? Como se estabelecem conexões com o que ele já conhece, de que forma um texto muda ao ser lido por ele em um momento ou em outro? Qual é o esforço, impacto ou estresse produzido ou exigido para lidar com o que ainda não se sabe, ou para deixar de conhecer algo de uma determinada maneira? Conforme comenta Gablik (1994), existe um forte investimento emocional nas posições já ocupadas pelos sujeitos, uma vez que elas constroem a realidade com a qual eles estão acostumados.
Requisitar que uma pessoa desmonte suas compreensões anteriores, revisite conceitos e reorganize toda sua existência não é um convite simplório. É preciso entender que, como recorda Britzman (1995), não é uma mera questão de recusa ou resistência ao conhecimento, mas o conhecimento que se tem é uma forma de resistência. Também se faz necessário perguntar, como faz Luhmann (1998), de que maneira o leitor se insere no texto, em oposição ao que o autor quis dizer ou como a leitura deveria ser compreendida, e de que modo determinadas identificações se fazem possíveis ou impensáveis.
Além de se perguntar como um professor pode endereçar tópicos sobre (homo)sexualidades em sua atuação, também cabe refletir sobre o porquê. Creio que a minha resposta decorre do que Villela e Ratto (2009) chamam de projeto de existência: acredito que a função do educador não é oferecer conteúdos padronizados, mas sim construir junto com os estudantes condições para vivências significativas e protegidas contra opressões. Isso significa que a sala de aula se transforma em um espaço tático, um local em que o educador pode assumir uma postura combativa frente a verdades estabelecidas e noções carregadas sem questionamento.
Entretanto, mesmo o desejo de mudança abraçado pelos estudantes pode enfrentar adversários inesperados, algumas vezes encrustados nas próprias iniciativas que se tentam libertadoras. Conforme aponta Kevin Kumashiro (2002), o desejo de seus estudantes lutarem contra a opressão se limitava a não perceber de que maneira eles próprios eram privilegiados e, nesse sentido, cúmplices. Percebi essa mesma resistência se configurar quando os alunos em meus cursos questionavam se eles não tinham o direito de se sentirem ultrajados pela presença de um corpo estranho ocupando o mesmo espaço que o seu. O desconforto com o diferente figurou como uma desagradável surpresa entre as percepções que tive ao longo deste estudo. O desejo de ajudar o outro e de tomar ciência de suas aflições enfrenta a barreira do conforto do observador. Parece importante, nesse contexto, que a separação eu-outro permaneça real e visível, de modo a não produzir rupturas na noção de si (próprio) ou no entendimento do anormal.
Lutar contra comportamentos e situações que se mostrem opressivos a sujeitos por conta de características e ações pessoais que não dizem respeito a outros indivíduos é o que tem me motivado a insistir na minha construção como pesquisador e educador. Auxiliado pela cultura visual e pela teoria queer, o ato de percorrer esse caminho não tem sido reto como se poderia esperar, tampouco claro e sem desvios.
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