segunda-feira, agosto 19, 2013

Teoria queer (parte 1)

Este texto é a primeira parte de uma série de três postagens dedicadas a pensar o que é a teoria queer e como ela pode se inserir em contextos pedagógicos. Nesta primeira parte, o foco da discussão está em compreender a base da teoria e sua "missão".

O queer que acompanha e nomeia a teoria surge como uma jocosa ironia, na medida em que se apropria de um xingamento para se posicionar criticamente a favor do ofendido. Traduzindo do inglês, queer significa estranho, e por derivação passa a significar bixa, viado, sapata. É aquilo que não se encaixa e causa desgosto, que não pertence. A língua portuguesa não possui uma tradução que concentre adequadamente a carga histórica que o termo queer possui no inglês, onde frequentemente era utilizado para atacar e condenar sujeitos cujas sexualidades não se conformavam às expectativas normativas. Enquanto termos como “bixa” e “transviado” possam soar semelhantes, eles reduzem o xingamento ao masculino, ignorando o feminino e prestigiando binários contra os quais a teoria se opõe. Por conta dessa dificuldade de tradução, seguirei trabalhando com o conceito em inglês, a fim de preservar o seu sentido e, principalmente, o seu potencial de disrupção de sentido.


Tomado como ponto de partida para uma ressignificação, os teóricos assumem-se como estranhos e como corruptores: a teoria queer não tem a intenção de ser mais um campo teórico, mas sim de questionar estabilidades, e por isso mesmo é tão difícil defini-la, uma vez que torná-la completamente inteligível esvaziaria sua força e potencial subversivo. Envolve teorizar o esquisito e, ao mesmo tempo, estranhar a teoria (LUHMANN, 1998). Mais do que se limitar ao estudo de gays e lésbicas, a teoria queer confronta noções de identidades fixas, classificações binárias e suas consequentes exclusões, focando esforços na compreensão dos papéis exercidos socialmente por aqueles sujeitos que ocupam posições ininteligíveis aos olhos das normas.

O queer não apenas é estranho e fora de lugar, ele também é ignorado, esquecido e negado. Os sujeitos que não se identificam com os discursos normativos das sexualidades na sociedade contemporânea ocidental estão relegados a uma existência inferior: são reconhecidos como desviantes, mas seu “desvio” não gera reflexão, é assumido como essencialmente errado ou, quando muito, como uma diferença que devemos aceitar e incluir.

É fácil pensar que queer institui uma categoria de identidade, um tipo de sujeito que não corresponde às normas. Contudo, Morris (1998) nos pergunta e alerta: “Essa categoria simplesmente instala um outro binarismo – queer ou não queer? Nós poderemos em algum momento dissolver o pensamento binário como um todo, e seria essa estratégia do não binarismo sequer útil?” (p. 276). Se pensarmos a definição de queer como simplesmente aquilo que não está normalizado, temos imediatamente uma normalização do que é ser queer. O estranho, subversivo e incompreensível passa a estar domado, controlado e seguro, sendo mais um conhecimento pronto para ser anexado em dicionários e para que pesquisadores possam identificar com certa facilidade: “isso é queer, isso é normal”. Uma vez compreendido e aceito, o poder que se instalaria pela dúvida se perde, dando lugar novamente às certezas.

Não devemos nos esquecer que, como nos alerta Britzman (1995), o queer não está nos atores, mas sim nas ações. Nomear um determinado grupo como queer é posicioná-lo fora da normalidade, mas antes de tudo significa posicioná-lo, estabilizá-lo. Esse é um movimento (e congelamento) ao qual a teoria queer não pode se permitir: o queer está no trânsito, no cruzamento de fronteiras e na indefinição de identidades. Não há como uma determinada identidade ser subversiva permanentemente, em qualquer espaço ou instante. A partir do momento em que for compreendida e nomeada, ela passa a não causar mais o impacto da indefinição.

Citando Berry, a respeito da forma como a “cultura do individualismo” espera que os sujeitos não mudem, Doll (1998) aponta: “Não importa de que forma o sujeito é reto [em inglês a palavra straight significa também heterossexual, e pode ser compreendida também como honesto ou normal], apenas que todas as perversões sejam amaciadas, de forma que a pessoa seja identificada completamente e sem ambiguidade” (p. 289). A teoria queer nos alerta para questionarmos categorias de identidade tais como “homossexual”, “travesti" etc., mas também sugere que levemos em consideração quais são os poderes e raízes históricas por trás da instituição e manutenção da heterossexualidade enquanto norma.

Na segunda parte desta série, discutirei a noção de inclusão da diferença. Na terceira e última, abordarei algumas "técnicas" para um olhar que se proponha queer. Caso alguém deseje as referências, basta pedi-las nos comentários ou por mensagem na Raposa do Face.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...