quarta-feira, janeiro 05, 2011

=)

Essa é uma postagem escrita às 2h50 do dia 3 de janeiro de 2011. Como estou sem internet, não poderei disponibilizá-la imediatamente. Contudo, talvez seja importante a data.

Eu passei um mês e meio num estado de felicidade constante, pontuada com uma ou outra dúvida, mas nunca deixando de ser feliz. Na virada do ano, porém, fui visitado novamente por alguma sensação de tristeza por estar virando um ano sozinho. Aliás, “sozinho”. Aqui em Goiânia já fiz amigos, meus colegas são inteligentes, meus professores são admiráveis, eu levo a vida que sonhei, ao menos na maior parte do tempo. A tristeza veio por eu ser eu, o cara que diz “nossa, estou tão feliz que acho que vou ficar triste por isso”. Assisti agora, pela segunda vez, ao filme Prayers for Bobby. De novo senti alguma coisa mexer no coração, um reconhecimento das emoções expressadas no filme. Por esses dias uma amiga comentou que outra veio lhe perguntar sobre mim, se ela sabia que eu era gay. Coloco assim, no passado, porque não me identifico dessa forma, mas acho que aqui é um momento para ser rapidamente inteligível.

Até o começo de 2006 eu simplesmente não existia. Estava lá, brincava com meus comandos em ação, lia meus livros, ia para aula, passava nas provas, aguentava chacotas, brincava com vizinhos. A primeira vez que saí com o pessoal da escola, no segundo grau, foi uma pizzaria, no aniversário de um colega, um dos únicos que eu realmente gostava. Lá naquela época, ainda não equipado com as regras de comportamento social exigidas de um guri da minha idade, comprei um peso de papel que era um peixe de vidro azul e escrevi, num cartão, uma série de frases de estímulo, carinho e afins. Nas semanas seguintes, espalhou-se a fama de uma carta de amor que eu teria escrito ao meu colega, e embora eu reconhecesse imediatamente do que estavam falando, não fazia sentido pra mim. Hoje fico em dúvida se o que mexeu comigo foi o fato de terem entendido errado ou de estarem pegando no meu pé. Talvez os dois.

Enquanto eu seguia não participando de festas, mas ouvindo os relatos de colegas – uns para os outros, não comigo –, sentia-me deslocado e afundava nesse autismo. Eu tinha certa raiva, talvez inveja, de um menino que entrou comigo no colégio, também vindo de outro lugar, mas que já na primeira semana de aula estava inserido nos grupos de amizades. Eu não dominava as regras de sociabilização e não tinha por perto ninguém que conseguisse perceber isso e me acordar. Era como se eu estivesse dormindo enquanto todo o resto vivia.

Tem um outro momento importante com esse menino do peixe. Certa vez estavam implicando com ele, chamando-o de gay por conta de seu jeito diferente, menos contido que o dos demais meninos. Ele era espontâneo e desafiador, beijava garotos no rosto, abraçada, mas também fazia o mesmo com as meninas. Eu admirava a coragem necessária pra fazer isso e ainda continuar passando por entre os grupos. Ele conseguia muito bem, mesmo que sua inteligência certamente bem acima da média causasse alguma inveja. Não minha, eu tinha outras coisas pra invejar, outros ódios pra sentir. Admirava a capacidade dele de se relacionar com todo mundo, de estar entre as pessoas, de ser chamado pros lugares. Ser reconhecido. Aí veio o dia em que a menina pegou no pé dele pelo seu “jeito afeminado”. Nem era, era só diferente, mesmo. Como eu estava por perto e ele percebeu que eu havia ouvido o caso, veio falar comigo. Eu disse – e me espanta o adiantamento do que eu só viria a conhecer esse ano na teoria queer – que a forma como ele se comportava não tinha relação nenhuma com o desejo que ele sentisse por homens ou mulheres, por pessoas, cachorros, sapatos. Naquela época eu não percebia o potencial dessa realização, para mim era simplesmente algo que eu repetia com afinco para tentar me convencer de que eu poderia ser normal.

O que mudou essa história foi um contato sexual com um estranho na praia. Eu lá sentado no escuro, na areia, e ele passou, me viu e percebeu que havia certo interesse no meu olhar. Por volta daqueles dias eu estava começando a romper a minha resistência em me envolver com seres humanos, já que estava iniciando um contato com um rapaz numa livraria, na praia, e percebendo que o desejo era mútuo. Foram dois meses muito interessantes, na praia, quando comecei a conviver com gente que se prostituía na adolescência e travestis, além de ter o carro da família à disposição para ir a festas. Ainda sem domínio das regras do jogo, eu simplesmente seguia aquela função toda e tentava aprender o máximo possível.

Eu dizia sempre que havia sido o sexo o que mudou minha relação com a vida, que me tirou do autismo e me colocou em fluxo. De fato, foi. Contudo, não o foi por sexualidade ser algo essencial, primordial, uma força que move a humanidade. Depois do sexo anônimo na praia e da paixão que não deu certo com o menino da livraria, eu voltei para Porto Alegre inspirado pelo desejo de encontrar um lugar em que eu pudesse me situar. Um espaço do qual eu pudesse participar sem ser deixado à margem, sem ser considerado de alguma forma inferior. Não sei se, na escola, algo me faltava, ou se era aos meus estúpidos colegas que algo sobrava. Passou algum tempo até eu entender que não preciso sentir raiva de ninguém. Posso sentir pena, pois acredito que eles continuam iguais ao que eram, e isso é um problema. Na cidade, conversei com amigos, comecei a estabelecer um entendimento do que estava acontecendo comigo. Iniciei minhas visitas a festas, interesses, relações.

Meio sem saber como o jogo funcionava, eu aprendi que poderia jogar igual.

Uma vez, no horário de almoço de um dia que tinha aula manhã e tarde, eu estava sentado sozinho num canto. Apareceram dois colegas, perguntaram o que eu estava fazendo, disse que nada e comecei a me levantar para acompanhá-los. Eu queria estar perto deles, não passar mais um almoço sozinho. Eles disseram algo como “não, não, pode ficar aí, a gente já está indo”. Isso tudo veio à minha cabeça por causa do filme Prayers for Bobby. Nele, o menino tenta de todas as formas não ser um pecador, não ser um homossexual. Ele queria ser diferente, mas não conseguia encontrar os meios pra isso. Como acontece em tantas histórias, ele poderia ter entendido, eventualmente, que não há um jeito certo de ser. O que eu queria, naquela época, não era beijar meninas no lugar de meninos, de ter amigos de um jeito ou de outro, de conversar sobre coisas sérias ou sobre amenidades. Eu queria beijar, ter amigos, conversar. “Ah, era só ter tentado”. Era mesmo? Eu me sentia invisível, incapaz de participar, desconhecedor das malditas regras. Era, eventualmente, acolhido por quem escolhia quebrá-las, e não soube aproveitar as amizades que surgiram dessas subversões. Somente depois da noite na praia é que aos poucos eu passei a me tornar visível para mim mesmo.

Eu não posso culpar meus colegas, professores, família, vizinhos. Ninguém tem o dever de ajudar outra pessoa a viver; e não culpo. Esse período de inexistência moldou em mim a força que eu tenho hoje pra estar vivendo o que vivo e gostando muito disso. Se voltasse ao passado, faria diferente? Claro que sim! Eu sempre invejei quem vivia desde sempre.

Repito o que eu disse na seleção do mestrado: se alguém tivesse feito isso por mim mais cedo, minha vida teria sentido pra mim desde muito antes. O que eu quero, como professor, é ser uma pessoa que poderá fazer isso pelos outros.

2 comentários:

maria lucia disse...

Nossa!!! Tu vai ser um baita professor, já tens tudo pra isso! Um certo grau de sofrimento (não importa com o que), nos faz pessoas muito melhores e capazes de entender (e só assim, ajudar/ensinar/facilitar o caminho)os outros. Já te falei... mas vou repetir: tu escreve MUITO!!! Bj, P Príncipe

Isadora Lenz disse...

uau. Tu escreves MUITO bem, fiquei impressionada. Já sou seguidora do teu blog e já li vários posts.

Gostei das tuas trilhas sonoras :)

beijo da isa
ps: filha da lucinha/marilu/maria lucia hehe

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