Certa vez recebi um trabalho corrigido, isso já no primeiro semestre da faculdade, no qual o professor me chamava de ingênuo. Esse sempre foi provavelmente o adjetivo que mais me ofendeu ao longo de toda a vida, basicamente por ser uma afronta ao meu (autodeclarado mais que suficiente) intelecto. Tudo bem, minha escrita tinha um quê forte de ingenuidade, mesmo. Afinal de contas, que propriedade tinha eu para afirmar que fumar não envolvia absolutamente nada de prazer, eu que nem havia chegado perto de um cigarro até então e que passava meus dias sentado no meu quarto brincando com Comandos em Ação?
Aí fui agora tomar banho ao som de Cássia Eller, mas resolvi não abrir o chuveiro enquanto curtia a Malandragem. Já cantei tantas vezes essa música, gosto dela sobremaneira e especialmente a parte do "eu ando na rua, eu troco um cheque". Por quê? Ora, lá pela terceira ou quarta série, numa aula de Português, a professora nos pediu que fizéssemos uma apresentação de teatro. Era em grupo, então aconteceu de um dia eu sair de casa e ir encontrar meus colegas. Lembro nitidamente que meu colega se atrasou um tanto grande, ao ponto de me irritar. Eu tinha horário para voltar para casa, mais de uma vez tive que pedir uma extensão a algum responsável (tia, mãe, padrasto, não lembro quem era) em função do trabalho de escola. Quando meu colega chegou, combinamos que faríamos como o Sai de Baixo, em que os atores improvisavam. Oi? Chegou o dia da apresentação e lá eu fui com meus colegas. Apaixonado pela Malandragem da Cássia Eller, eu havia feito um cheque de papel e umas notas de dinheiro, também desenhadas. E sim, em meio àquela confusão que foi a nossa "peça", eu disse "vou trocar um cheque", mostrei o papel e saí da sala. Depois voltei todo pimpão com minhas notas de dinheiro desenhadas, e ainda mostrei à professora orgulhoso do meu feito. Aquilo, para mim que nem entendia direito a noção de dinheiro, era enorme. Fico em dúvida se ela percebeu isso, resolveu que era um momento meu e deixou-me vivenciá-lo, ou se era simplesmente despreocupada com aquela atividade e estava apenas ocupando seu e nosso tempo para que o ano passasse.
Nessas coisas de escola as memórias são muitas. Uma vez a professora saiu da sala, mas não sem antes proibir um colega de ir ao quadro para responder a um exercício. Ele insistiu em querer ir e eu, prestativo e confiante na autoridade da professora, tentei segurá-lo. Eu realmente fiz força para obedecer e fazer cumprir as ordens da docente. Ignoremos brevemente o fato de que força era algo que eu não tinha (acho que ainda não tenho, fique registrado). Aliás, ignoremos de todo, sim? Naquele instante tudo o que fazia sentido era parar o menino, impedi-lo de ir ao quadro. Já gastei várias horas da minha vida adulta tentando compreender o que se passou naquele dia, que mecanismo poderoso de coerção (ou de inspiração) a professora tinha sobre mim.
Um último exemplo, esse dos mais irritantes. Acho que já o contei aqui na Raposa Antropomórfica, mas se o fiz, foi há mais de dois ou três anos. Estava no centro da cidade com meu irmão e aquele que na época era o seu melhor amigo. Ele decidiu fazer um experimento e mostrar algo engraçado ao amigo. Claro, o alvo da brincadeira era eu. Lá estava eu, cuidadosamente atento a seguir meu irmão em meio àquela multidão. Não sabia bem como proceder caso o perdesse de vista. Aliás, sempre morri de medo, quando pequeno, de me perder de quem estivesse me guiando, já que aquela manada de gente e de prédios imponentes mais me assustava do que se explicava. Eu era uma criança assustada, ao ponto de querer chorar num dia que me soltei da mão de minha mãe e caminhei mais rápido que ela, passando então a não mais a enxergar e sentir-me, por alguns segundos, completamente perdido na vida. Bem, de volta ao meu irmão. Ele disse, e eu ouvi, algo como "olha isso", apontando para mim. E saiu caminhando. Eu, claro, fui atrás. Ele deu a volta em uma velha que estava ali parada e eu fiz o mesmo. O amigo riu. O irmão riu. A velha reclamou: "nessa idade e ainda não sabe andar sozinho". Nem sei para onde estávamos indo, só sei que guardei essa memória com tanta força (e raiva) que até hoje ela me incomoda.
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Viram? Eu era um anjo! |
Estou aqui mencionando todas essas peripécias para sustentar um argumento: acho que ainda hoje não deixei de ser ingênuo. Acho que, na verdade, nunca deixarei. A única coisa é que hoje eu troquei ingênuo por sonhador, por distraído. Há quem pense que eu não me importo com as pessoas - e eu bem que repito isso para parecer malvado -, que eu não sairia do meu caminho para interferir (positivamente) na vida de outrem. É bem verdade, mas não por consciência ou vontade. É simplesmente por não saber como, qual é o momento que pode, qual que não pode. Aquela coisa de não dançar para não chamar atenção, para não ser risível. Ingenuidade e medo, isso sou eu. Eu acrescentaria "paixão" a essa fórmula, mas ultimamente são poucas as coisas que têm sustentado um fervor que mereça esse nome. As aulas, agora, acho que estão sendo dignas dessa intensidade. A questão é: e o medo de falhar? E a dúvida se eu não estou sendo menos do que deveria, mais distraído do que deveria, menos rápido e esperto do que deveria?
Deveria. São as tais das ideias prontas (tradicionais, absorvidas da experiência etc) que me contaminam e me fazem observar o que delas eu não tenho. Inseguranças. Aliás, não é medo, é insegurança. Eu não tenho medo de fazer as coisas, apenas não acho que elas vão dar certo. É bem diferente. E arriscar nunca foi meu forte, porque implica sair do campo seguro da distração (ingênua) e avançar sobre outros mundos, outras realidades, outras pessoas.
Ai, essas reflexões antes do banho... Deixa eu correr para debaixo do chuveiro, agora, pois estou com um leve friozinho.