segunda-feira, outubro 11, 2010

Permitindo intolerância, parte 1

Hoje vi uma matéria no Mix Brasil e me pus a pensar não só no que ela está dizendo, mas também no que está sendo deixado de lado. Gostaria de analisar ao mesmo tempo o outdoor que ela questiona, evidentemente um exemplo danoso de como uma instituição pode fomentar preconceitos (parte 1), e os argumentos em que o autor da matéria se baseia para julgá-la negativa (parte 2). Estou dividindo esta postagem em duas partes, por serem objetos de análise distintos, ainda que o tema seja semelhante.

"Em favor da família e preservação da espécie humana. Deus fez macho e fêmea." diz a frase ao lado de um padre sorridente e carismático. Convidativo, até. Eu consigo entender a preocupação do pastor Silas Malafaia com a ideia de família, certamente prejudicada pela constituição de casais homossexuais. Evidente, se uma família é igual a um homem, uma mulher, dois filhos e um cachorro (ainda que atualmente esteja muito na moda ter uma tartaruga), quando colocamos dois homens sob o mesmo teto, ou ainda duas mulheres, a estrutura está interrompida, jogada fora. Concordo, um casal lésbico rompe absolutamente com a sociedade heteronormativa que reforça a noção de que a mulher deve ser subserviente ao homem, este por certo o chefe de família. Imaginem dois homens dividindo um lar: qual deles ensinará a filha a lavar a louça e a passar as roupas do marido? Quem dará o exemplo correto do gênero que deve ser seguido pelo macho ou pela fêmea?
Pensemos, portanto, quem está excluído dessa estrutura econômica chamada família. Quem não está autorizado a compartilhar dessa forma de organização heterossexual? "Ah, mas os gays agora podem casar na Argentina e em diversos países no mundo". Verdade, muito lindo, mas é isso mesmo que se deseja? Um emparelhamento da identidade homossexual (seja lá o que isso congrega) à heterossexual, às estruturas já definidas como corretas em detrimento de práticas e experiências que não são socialmente, juridicamente, muitas vezes religiosamente, aceitas? Pensemos, por um instante, qual o perigo de um filho ser criado por três pais, dois pais e uma mãe, duas mães e um pai, três mães. Ou, ainda, por onze transgêneros. Não é minha intenção aprofundar a discussão sobre alternativas à ideia de família tradicional, ainda, mas não pude deixar de observar o que está marcado no discurso do pastor.

Preservação da espécie humana? Não tenho nada contra essa ideia, e talvez seja até mesmo possível concordar que quando misturamos um macho e uma fêmea, mexemos e gememos, temos um filho e, assim, a espécie se prolonga.
Agora vamos cogitar uma linha diferente de pensamento, por favor? Os seres humanos estão vivos pra quê? Qual nosso papel na existência? A que viemos, pra onde vamos? São perguntas que movimentam a filosofia dos homens há alguns anos, já. Alguns milhares. Então existem instituições que dão essas respostas? Vivemos para esperar o paraíso, vivemos para escapar do ciclo eterno do sofrimento e atingir a iluminação, vivemos para o prazer, vivemos, vivemos pra tantas coisas. Eu não tenho essa resposta, mas convivo com a pergunta a tempo suficiente para arriscar alguns princípios de crença. Para mim, não faz sentido estar vivo se não estivermos experimentando, experenciando, existindo. Não digo, com isso, que todos devam provar todas as frutas (sim, é um eufemismo para sexo). Digo, antes, que se deve estar pronto a saber que todas as frutas podem ser provadas.
[Evidente, existem limitações não muito claras para esse todas. É uma questão com a qual me pego constantemente: qual o limite do aceite à diversidade? Se aceitarmos tudo, por que não admitir também práticas culturais de tortura, pedofilia e assassinatos? O mais próximo de solução para esse problema, sempre relativizável, é que devemos estabelecer certos parâmetros de intenções e possibilidades. Ainda que de forma maleável e discutível, pensar no bem estar do outro e assumir que não estamos sozinhos, ou seja, sermos solidários, parece um bom ponto de partida. Eu tenho direcionado minha existência com essa preocupação: não fazer mal aos outros. Super discutível, eu mesmo ainda levantarei polêmica sobre isso, mas só quando isso não derrubar meu próprio argumento...].
Com essa volta toda, gostaria de dizer que não vejo sentido em preservarmos a vida humana se dela não fizermos nada. Jorge Drexler canta sobre "mil vidas mal gastadas por cada mandamento". Não quero mesmo bater de frente com qualquer crença religiosa estabelecida. Minha preocupação, aqui, é que as pessoas tenham direito de viver plenamente, sem bloqueios morais que não servem para ajudar ninguém ao longo de sua vida. O pós-vida, para mim, não é uma preocupação, pois não entra no meu pacote de crenças. Se entra na de outras pessoas, como a do pastor que deseja a preservação da existência humana, não seria interessante que isso não interferisse nas existências de gente como eu?
[Ainda hoje estive lendo um texto de Jen Bacon chamado Teaching queer theory at a normal school, no qual ela problematiza o quanto o discurso da diversidade e da livre expressão deve permitir discursos de ódio. Parece-me ser o caso aqui].

"Deus fez macho e fêmea". E hermafroditas, acrescente ali, por favor. E provavelmente alguma outra categoria de exceção que, exceção ou não, é categoria que rompe com esse código binário. É fácil perceber a razão pela qual gatos não se vestem de gatas; por que lindos passarinhos não pintam suas penas; por que crocodilos choram por matar sua presa (mas não de tristeza). O que não é fácil, por outro lado, é entender homens que se travestem, adolescentes de cabelo rosa e falsidades teatrais. Por quê? Pois o ser humano é uma criatura cultural, que atribui significados a suas práticas que vão além das práticas em si, que colaboram e elaboram socialmente sentidos para determinadas atitudes, que compartilham valores, epistemologias, crenças. Dinossauros não rezavam para estátuas, rezando por um milagre vindouro (talvez por isso tenham morrido, vai saber?). Da mesma forma, homens inventam explicações para como o mundo funciona (magia, religião, ciência), acreditam nelas e, a partir daí, se justificam como detentores da verdade que todos os outros precisam saber e concordar, ou senão morrer.
[Eis o momento advogado do diabo: a própria noção de crueldade é cultural, e portanto depende do ponto de vista do qual estamos falando. Esse é ao mesmo tempo o perigo da relativização plena e a base para assumirmos alguma base nesse revolto mar de possibilidades. Repito que a minha base é o bem estar humano e a proteção do direito de cada um experienciar sua vida sem danos aos outros].
Sendo cultural, a base biológica perde grande parte de sua importância, como podemos constatar pelas relações que acontecem depois da definição macho/fêmea. É o caso do que os médicos (ou psicólogos? Enfim, os arautos das grandes narrativas da modernidade) chamam de disforia de gênero, ou seja, quando um menino nasce num corpo de menina ou o contrário. Ou, para não apelarmos para algo medicalizado, que tal um macho que apresenta características de um gênero feminino, ou ainda não apresenta marcadores específicos de masculinidade? São tantas as brechas no sistema binário de constituição das identidades que, mais do que defender o que é certo em contraposição ao que é errado, o que é normal ou anormal, bonito ou feio, precisamos aprender a dissolver essas definições sempre que elas causarem mal a alguém.

2 comentários:

maria lucia disse...

MUITO bom!

disse...

Oi Tales, gostei do que você escreveu, a forma como colocas as palavras, faz a gente refletir a respeito da vida...

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