domingo, outubro 10, 2010

Sobre suicídios

Ontem estive conversando com dois amigos e ficamos comparando nossas histórias de bullying no período do colégio. Em primeiro lugar, gostaria de comentar como é verdadeiro o apontamento de Rogério Diniz Junqueira, no artigo Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas, no qual em certo ponto é defendida a ideia de que as reações homofóbicas ocorrem principalmente por uma questão de gênero, mais do que de orientação sexual. São as pessoas que desafiam as normas de masculinidade ou de feminilidade que são perseguidas e ofendidas, que passam por sofrimentos e ataques na escola. Quem não rompe a expectativa de que um homem seja másculo está, de certa forma, protegido. "Tudo bem ser gay, mas não precisa parecer uma mulher". Existe muito nessa discussão sobre o que significa ser uma mulher (as feministas e os teóricos queer que o digam) e, também, o que é ser gay, essa categoria construída socialmente que não só se diferencia da de homossexual, como também não implica somente em um homem direcionar sua afeição a outro homem. Aliás, como bem me elucidou Susanne Luhmann, no artigo Queering/querying pedagogy? Or, pedagogy is a pretty queer thing, o constructo hetero/homossexual só faz sentido se tivermos categorias estabelizadas do que significa ser um homem ou uma mulher. Nesse sentido, uma fluidez de gênero por certo eliminaria (ou confundiria seriamente) essas classificações.

Bem, depois dessa breve teorizada, gostaria de apresentar uma matéria que li há uns minutos e adicionar algumas reflexões.


Sim, é muito provável que o menino tenha sofrido abusos, ora físicos, ora psicológicos, e que isso tenha se somado ao debate acalorado e aparentemente intolerante do conselho da cidade. Sim, é muito difícil lidar com o confronto diário, na escola, com pessoas que são diferentes de você e acreditam radicalmente que você deveria ser igual a eles ou, pelo menos, diferente do que é.
[Aliás, pensemos com cuidado nesse é, já que não quero falar em identidades fixas, muito pelo contrário: somos uma coleção de fragmentos que interagem e se transformam constantemente, tanto por conta do nosso contato com o exterior quanto por nossas experiências passadas, percepções, crenças etc].

Eu tive que ouvir, muitas vezes, xingamentos. Era seguido e empurrado por alunos mais velhos no primeiro colégio em que estudei. Já entrei em sala de aula, no segundo colégio, e no primeiro dia tive que ouvir gritinhos de gay e viadinho de pessoas que mal tinham conversado comigo alguma vez na existência.
[Preciso comentar que nessa época eu ainda lutava comigo mesmo e com essa ideia de orientação sexual. Ainda me apaixonava por meninas, ainda que platonicamente, e inclusive tive a chance de abandonar o platonismo e de fato me envolver com elas. Somente depois do colégio, anos depois, que tive a chance de ser enquadrado em qualquer classificação de homossexual, se formos considerar a necessidade de uma prática para essa definição. Se eu pensava antes, se sentia atração, desejo? Sim. Se entendia, manifestava ou procurava? De forma alguma no colégio. O que meus amados colegas percebiam? Que eu não tinha um comportamento marcadamente masculino, não jogava futebol, era frágil, sentava em posições diferentes, era flexível, falava manso. Gênero. Ser gay não é uma escolha: é uma marcação identitária que define a pessoa, que congela sua existência associando-a a determinadas práticas, desejos ou corporalidades].

O menino [que falta de respeito, recomecemos o parágrafo!]
Zach Harrington cometeu suicídio, provavelmente por não suportar a oposição que teria que viver, talvez, durante toda sua vida, por conta de uma imposição de identidade. Eu não entendo o que pode ter se processado na cabeça dele, pois quando as ideias de abandonar a existência vinham me visitar, eu as repudiava baseado na fé de que não-viver, pra quem nasceu, não faz sentido. Essa mania humana de querer dominar tudo, inclusive a duração do tempo de uma vida é algo que me assombra. Jorge Drexler canta sobre a obsessão humana de querer perdurar, e Neil Gaiman, através de sua personagem Morte, já disse em um lindo diálogo entre ela e um bebê: ao ter sua alma capturada, o bebê pergunta à Morte "era isso tudo que eu tinha pra viver? Algumas horas?", ao que é respondido "sim, o tempo de uma vida".

Creio que eu precisaria de algumas páginas, ainda, para explicar as razões pelas quais considero o suicídio uma escolha ruim. Quando li a matéria, me pus a pensar que diferença ele conseguiu causar com sua morte. E, mais do que isso, quanto mais não poderia ter mudado se ele permanecesse vivo e fizesse de sua existência uma luta constante pelo que acreditasse ser o correto?

Talvez, acima de tudo, o tempo de uma vida dele fosse justamente esse, de dezenove anos: o tanto que ele suportou essa dor que é viver.

2 comentários:

Sidereus Nuncius disse...

Devo dizer que aplaudo não só o texto, mas tua atitude. Dá de sentir não apenas sensibilidade nele, mas também a coragem.
Com relação ao suicídio não encaro isso como forma de covardia, existem inúmeros fatores tanto externos quanto internos que levam alguém a comete-lo, talvez seja até um ato de coragem abreviviar a propria existencia, tendo em vista que não sabemos o que vem depois dessa nossa breve passagem por aqui,e,conhecer o desconhecido, o diferente, com certeza pode ser tido como ato de coragem, talvez se os teus colegas tivessem tido a coragem de te encarar, de te conhecer de verdade as coisas fossem diferentes, como você teve a coragem de encarar quem é, de se conhecer e aceitar isso e não optar por ser mais uma vítima.
Se o garoto (que falta de respeito), se Zach faria mais diferença vivo nunca saberemos, levar uma existencia cheia de lutas constantes requer muita força, e alguns são mais fortes como mártires, independente disso, a diferença que ele fez foi que o sacrifício do garoto te inspirou a escrever esse texto que pode não tocar a todo mundo, mas talvez faça alguns refletirem. "Ao que nos compete discernir, o único propósito da existência humana pe lançar uma luz nas trevas do mero ser". C.G.Jung
Para finalizar, citaste Neil Gaiman, cito Alan Moore "Levamos a vida sem nada melhor pra fazer. A razão, inventamos depois"
Mais uma vez parabéns, pelo texto e por quem tu és.

maria lucia disse...

Em primeiro lugar, tu escreve muito bem. Parabéns, Tales!
Em segundo, eu achei muito interessante ser o gênero e não a orientação sexual que pesa mais para o bullying na situação em questão. Nunca havia pensado nisso e parece explicar mais um monte de outras “injustificativas” para essa prática deprimente. Amanhã, a menina gorda que sofre na escola hoje poderá ser a magra demais. Tudo determinado pela cultura, inclusive os nossos preconceitos, que nada mais são que algo que a gente pena para se livrar ao longo da vida.
Por falar em “vida”, ela não existe sem dor. E a maior, ainda é a da rejeição. Uns aguentam, outros não.
Por isso, a cada dia me convenço a valorizar os laços de afeto, ou seja, a interação que estabelecemos, independentemente de quem sejam ou foram as pessoas (ou “essa coleção de fragmentos que interagem e se transformam constantemente” Adorei). Bj com todo o meu carinho.

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