quinta-feira, setembro 15, 2011

Relato de infância e gênero

Eu não fui uma criança muito existente. Ficava na minha, quieto, ouvindo o que os outros viviam e sem atentar para o fato de que poderia também viver. Creio que já era jornalista bem antes de haver me decidido por esse curso de graduação, acostumado que estava em ficar nos bastidores, anotando e registrando as experiências dos outros, algumas vezes relatando, mas nunca participando. Quase um pesquisador objetivo.



Foi por essa quietude toda que guardei pra mim as dores de ser caçoado quando cortei meus cabelos. Eu, menino de lisos e loiros cabelos compridos, doce garoto com aparência andrógina, fui cortado sem piedade. Ou talvez por piedade. Minha mãe, preocupada com as reações que já se somavam frente ao menino-que-parecia-uma-menina, levou-me à cabelereira e mandou-a que me deixasse com cabelos curtos. Lembro que chorei muito enquanto caminhávamos pelo centro, já de volta para casa. Ela apertou forte minha mão, parou, ajoelhou e perguntou: "tu achas que eu faria algo pra te magoar?". Não, não achava, e ainda hoje não acho. Se acredito que ela errou? Difícil dizer, minha vida escolar não era a menos conturbada possível, e certamente não seria mais fácil do que foi se eu mantivesse os cabelos compridos. Naquele momento, eu ainda não compreendia que estava sendo ensinado a ser menino, tanto quanto eu não entendia os comentários homofóbicos dos meus colegas.

Alguns anos mais tarde, cabelos curtos, aula de educação física. Eu não exercitava: caminhava ao redor da quadra enquanto os outros meninos jogavam futebol. Recordo de um dia que, com um casaco nas mãos, coloquei-o sobre a cabeça, amarrando-o e deixando-o cair para trás, algo como se fossem cabelos longos e amarrados. Só hoje, estudando sexualidades e gêneros, percebo alguma importância nessa relação com (como) ter os cabelos.  Meu professor de educação física repreendeu-me, disse-me que se quisesse ser mulher, pois que vestisse logo uma saia, algo que achei curioso e agressivo, pois nunca desejei pertencer ao sexo (gênero) feminino.

Somente agora, repensando esses momentos, consigo costurá-los e perceber que são desejos (frustrações) que se repetem. São modos de ser masculino que não envolvem força e vigor. Foram cuidados, tanto da minha mãe quanto do meu professor, que provavelmente buscavam apenas o melhor pra mim. A gente nunca sabe, contudo, o que aquilo que acreditamos ser o melhor para o outro terá como efeito sobre ele. Quem eu seria se eu pudesse ser quem eu era? Existe alguém que "foi o que era" sem intervenções, sem controles nem permissões?

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