terça-feira, fevereiro 28, 2012

O que é ter pensamento crítico?

Sexta-feira participei de um evento que se propunha a discutir as relações entre acadêmicos e ativistas, enquanto hoje assisti a um filme e depois a uma breve discussão sobre o modo como as mulheres são representadas na mídia. São esses instantes que reforçam em mim o desejo de estar em um meio intelectual onde pessoas discutem ideias e posicionamentos. Curiosamente, ambos os eventos tentaram lidar com a separação que frequentemente existe entre universidade, de um lado, e o "mundo lá fora". Essa é uma questão que tenho tentado enfrentar pelo viés da Educação desde que me certifiquei de que não me tornaria um jornalista, apesar do treinamento para tanto.

O que eu acredito que a universidade pode servir aos sujeitos que passam por ela é mais do que o aparato técnico para cumprir uma função. Pelo menos no Brasil, no geral cursos de graduação têm uma função clara: habilitar para algum tipo de profissão. Durante o curso de jornalismo, poucas foram as oportunidades para realmente sentar e pensar sobre a mídia, o papel da internet na sociedade contemporânea, a forma como a publicidade informa e (re)constrói identidades, entre tantas outras coisas que deveriam ser pensadas por futuros comunicadores. Por outro lado, aprendi a entrevistar, refinei minhas habilidades de escrita, ganhei noções de fotografia etc. Ainda que tudo isso possa me ajudar a pensar melhor, esse não foi o objetivo da maioria das minhas aulas.

O que é pensar melhor? No evento de sexta-feira falamos em pensamento crítico, o que não é exatamente muito fácil de explicar. Eu entendo essa ideia como uma técnica intelectual, uma ferramenta que nos convida a explorar o conhecimento através de perguntas e de dúvidas. Em resumo, seria uma tentativa de compreender "o que está por trás", ou "de onde vem" um determinado saber. Se nós concordamos que vivemos em um mundo com diferentes posições digladiando-se entre si para alcançar o status de verdade, então uma postura (e uma tática) que nos convide a buscar como essas verdades são construídas parece cair como uma luva.


Esse convite ao pensamento crítico é feito pela cultura visual, que nos ensina sobre o caráter social e político das imagens e dos significados que construímos com e a partir delas. Eu não preciso explicar essa imagem, tampouco seria capaz. Eu poderia fornecer informações contextuais sobre sua existência, tentar explicar quem é esse deus que ama quem dá com alegria, tecer referências sobre o coração como símbolo de amor, ou da figura desenhada como sendo um personagem cultural bastante conhecido em nossa cultura ocidental. Ainda assim, todas essas informações estariam vindo de um ponto de vista específico que se dedicou a perceber algumas coisas, que deixou de notar outras e que tomou decisões na hora de escrever este texto e compartilhar ideias.

Se pensarmos nos muitos níveis de significado que uma mesma imagem pode alcançar, começamos a arranhar a complexidade do que nos circunda. Nós humanos recentemente na história passamos de uma postura centrada em figuras mitológicas para pensarmos a nós mesmos como o centro de tudo o que há. Isso é particularmente um problema quando esse nós é especificamente branco, heterossexual, homem, superior à mulher, cristão e de classe média. Se for monogâmico e casado com dois filhos e um cachorro, ainda melhor. Essa categoria que atende pelo supostamente universal nós é muito mais restritiva e condensada do que plural, não atendendo nem descrevendo uma larga fatia da humanidade. Em nossa arrogância e pressa de dominar o mundo, construímos conceitos e ideias para explicar o que há no mundo, porém não percebemos que eles são incompletos. 

Como nós pensamos através da linguagem, chegamos ao ponto de pensar que ela vem antes do mundo e não o contrário. O que é uma bobagem, óbvio. Ainda assim, quando dizemos mulher, estamos pensando naquela coisa óbvia e autoevidente que tem um órgão sexual pra dentro e que pode engravidar. Pois é, exatamente disso que eu falo: nós naturalizamos esses conceitos ao ponto deles parecerem que vêm antes da realidade. Quando falamos em mulher, todos entendemos mais ou menos a mesma coisa. Não é? Não, não é. Façamos um exercício de pensamento crítico, sim?

Quando falamos em mulher, todos entendemos mais ou menos a mesma coisa.
Falamos, entendemos. Nós, primeira pessoa do plural. Quem somos nós? É uma estratégia comum de quando estamos falando algo (como nessa frase que estou escrevendo) utilizarmos o nós para se referir ao coletivo de pessoas com o qual compartilhamos a mesma posição. Isso significa no mínimo duas coisas: 1) estou falando por outras pessoas, assumindo que temos, de fato, a mesma forma de entender um determinado assunto; 2) se nós pensamos assim, como eles pensam? Quem são eles? Quem eles pensam que são? 
Então aqui já temos um problema, pois o número de pessoas com as quais me identifico intelectualmente não é muito grande. O meu nós, portanto, não é tão abrangente. Da mesma forma, tenho certeza que muitos nós que existem por aí também não falam por mim. Na melhor das hipóteses, algumas poucas pessoas podem de fato falar por mim. Entretanto, verdade seja dita, deixem que eu fale por mim, muito obrigado!

Mulher, mais ou menos a mesma coisa. A primeira vez que alguém me puxou a orelha sobre isso foi nas páginas de Problemas de gênero, livro de Judith Butler publicado há cerca de 19 anos. Ela faz uma pergunta simples: qual é o sujeito do feminismo? Existe uma mulher que sintetize essa luta? Todas as mulheres vivem pelos mesmos ideias, sofrem as mesmas amarguras, combatem os mesmos desafios? Ou será que, assim como o nós, também estaríamos silenciando a voz de outros sujeitos que não participem do nosso clubinho? Será que, ao me referir à mulher, não estou ignorando, digamos, mulheres africanas, índias, negras, transexuais... A lista vai longe.

Nós gostamos de discursos universalizantes. Essa minha frase é um perfeito exemplo disso, já que estou falando por todos os seres humanos. Acho razoavelmente que tenhamos objetivos universais, ao menos em termos de alguns parâmetros sobre os quais possamos agir e pensar. Aquela coisa básica: não matar, não esfaquear o vizinho etc. Ainda assim, esquecemos que esses discursos englobam uma variedade potencialmente infinita de ideias e pontos de vista e as condensa em uma única posição, uma única forma de perceber a realidade.


O que decorre dessa mania dos discursos que falam por todos é que passamos a acreditar que algumas verdades são mais verdades que outras. Essa é a base da ciência: investigar objetivamente a realidade, abraçar sua complexidade incompreensível e mastigá-la em pedacinhos absorvíveis de conhecimento. Preciso mesmo dizer que esse projeto modernista faliu? Não só nós fomos incapazes de explicar o mundo até hoje, como cometemos atrocidades culturais em nome de uma perspectiva pouco ética. Como qualquer estudante de jornalismo aprende no primeiro semestre de aulas: não existe essa tal de objetividade. Alguém, em algum momento, está fazendo escolhas sobre o que dizer, o que pesquisar, o que é digno de ser investigado, o que é óbvio, o que é natural, o que não é. 

Isso é verdade para basicamente todas as áreas (olha o discurso universal aí de novo): ninguém pode falar por todos. Quanto antes aprendermos isso e nos munirmos de ferramentas e táticas para perceber as maneiras como apagamos as existências dos outros, melhor. Quanto antes entendermos que nossas certezas só duram até que uma dúvida surja, melhor. Quanto antes essas dúvidas aparecerem, melhor.

Eu ousaria dizer que se o teu mundo faz sentido completamente, alguém ou alguma coisa provavelmente está sendo deixada de lado, ignorada, esquecida, apagada etc. E eu posso viver com isso, posso mesmo. Contanto, é claro, que tu me diga que sabe disse e que, ao invés de ignorante, é egoísta. Se for os dois, aí eu não perdoo.

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