Li a notícia "Travesti com barba é escolhido para representar a Áustria em festival" e pensei "nossa, que legal". Nem todo mundo pensou a mesma coisa, parece que teve gente chocada. Um amigo ficou indignado perguntando por que ele (!) não pode querer ser mulher (!!) e ponto (!!!).
Por que a cantora Conchita Wurst virou notícia? Simples: porque nós somos muito pouco criativos e temos a mania de dividir nossos conceitos em dois polos. Usamos um pensamento binário. Nem é tanto culpa nossa, somos ensinados assim desde criancinhas. Ou algo é bom ou é mau, ou é alto ou é baixo, ou é homem ou é mulher, e assim por diante.
O problema disso é que dois não é suficiente. Mesmo biologicamente os critérios que definem o que é homem e o que é mulher são pouco claros, quando analisados detidamente. Se existem inúmeras variações para as possibilidades que a vida humana alcança, por que deveríamos nos contentar com um tipo de pensamento tão excludente? Tudo bem, talvez a maioria da população possa ser encaixada nessas duas caixinhas, "homem" ou "mulher". Mas sério que a gente ainda não superou esse pensamento tosco "ah, é a maioria, então o resto a gente caça e elimina"? Isso é tão Idade Média!
Além de separar o mundo em masculino e feminino, nosso pensamento binário tem outra consequência: ele dita como devemos ser. Se somos homens, seremos fortes, barbudos e pegadores. Se somos mulheres, seremos dóceis, frágeis e receptoras do supremo pênis. Essas características não vêm com a gente junto ao órgão genital, elas são ensinadas e reforçadas pela cultura diariamente. Na escola meninos jogam futebol e meninas caminham ao redor da quadra, por exemplo. Isso para não mencionar como os pais, amigos e conhecidos esperam coisas diferentes de homens e de mulheres. Ser um homem, nesse sistema cultural, significa pisar nos outros. Ser mulher geralmente envolve ser pisada.
Daí aparece alguém que desafia essa matriz de conhecimento binário. Por exemplo, um corpo macho que se mostra feminino, mas mantém a barba. Ou seja, fica, de certa forma, "no meio". As pessoas gritam "decida-se", mas o que há para decidir? Quando foi que, ao nascermos, assinamos um contrato dizendo que só poderíamos ser uma coisa ou outra? Que para ser uma coisa temos que levar junto o pacote inteiro e não apenas aquilo que nos interessa? Se o desejo, como já sabemos, é fluido (não é por nada que por enquanto minha amiga é árvore) e não responde a essas nossas limitações, por que a nossa identidade de gênero deveria?
Quando nós apontamos o dedo para a "travesti de barba", nós não estamos mostrando o quanto ela está certa ou errada, mas sim dizendo ao mundo se nós conseguimos ou não conviver com alguém que pode ser diferente de nós. Daí eu pergunto: que sensibilidade é essa que se fere tão fácilmente ao ver uma mulher ou travesti de barba? O que há de tão importante em manter o mundo rapidamente legível? Por que nós não conseguimos lidar com a diferença e com a miríade de potencialidades do ser humano?
Não tenho respostas para essas perguntas, mas aposto que têm a ver com o nosso egoísmo. Nós queremos navegar em um mundo fácil, um mundo pronto, um mundo que não perturbe a maneira como já percebemos as coisas. É mais fácil termos uma noção única e pronta do que reavaliarmos nossas posições quando encontramos algo "diferente". É certamente mais fácil rejeitarmos aquilo que não entendemos do que termos que assumir o compromisso de abraçar a diferença e cultivar o carinho para com o outro. Receber o outro com um sorriso implica em colocarmos menos o nosso umbigo em evidência, algo que tenho certeza que é muito difícil.
2 comentários:
Raposa, depois desse texto uma pergunta habita minha mente como prática diária: "por que isso me incomoda tanto?". Faço questão de respondê-la, assim tento abandonar essa necessidade de encaixar pessoas e atitudes num padrão. Obrigado.
Identificar nossos preconceitos é sempre o primeiro passo. Assim fica mais fácil entender o que nos afeta e como podemos garantir que afete cada vez menos, se for o caso. =)
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